Pelo que elas lutam?
Quem são e o que querem as mulheres que estão no movimento sindical
“Um companheiro chegou a falar que eu não conseguiria ser ouvida pelo setor urbano. Que não daria para eu assumir a presidência da CUT [Central Única dos Trabalhadores] porque eu não falaria para o setor urbano”. Maria Madalena Firmo, Leninha, agricultora familiar, primeira mulher a ocupar o mais alto cargo da CUT-BA conta que, acrescida à resistência por ser mulher, sua candidatura ao posto enfrentou ainda mais preconceito por ela ser uma mulher rural. “Obviamente, aquilo me feriu de morte”, completa.
A história da participação das mulheres no movimento sindical do Brasil pode ser resumida em duas palavras: apagamento e invisibilização. Poucos registros, informações e atenção às pautas femininas. A ironia, a força e o caráter exemplificador do relato de Madalena residem no fato de que, no deserto de representações femininas no sindicalismo, um dos poucos nomes que não foi tragado pela falta de reconhecimento é justamente o de uma mulher do campo, uma agricultora: Margarida Maria Alves.
É a líder sindical que dá nome à Marcha das Margaridas, maior marcha de mulheres da América Latina, que, desde 2000, acontece a cada três anos, em Brasília. A última edição foi em 2019 e reuniu mais de 100 mil trabalhadoras. As Margaridas são, em sua maioria, ribeirinhas, agricultoras, pescadoras, quilombolas, extrativistas e mulheres indígenas que lutam pelo fim da violência contra a mulher, por melhores condições de vida no campo e políticas públicas para a mulher rural.
Margarida foi uma das primeiras mulheres a comandar um sindicato no Brasil. Liderou por mais de dez anos o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, na Paraíba, e lutou por direitos básicos. Foi assassinada a mando de fazendeiros locais, em 12 de agosto de 1983, na porta de casa, na frente do filho e do marido.
Assim como Margarida, Leninha teve a sua luta forjada pela vida que conheceu. Vinda de família de agricultores familiares militantes, ainda menina acompanhava o pai e a irmã nos movimentos de organização dos trabalhadores, dando início à trajetória que a levaria da primeira coordenação de eleição sindical, aos 17, à presidência da CUT-BA, passando por três mandatos como vereadora do município de Valente. “Naquela época [nos anos 70] [o movimento sindical] era proibido por conta da ditadura militar, mas a gente usava o trabalho de igreja que fazíamos e aproveitávamos para organizar os trabalhadores”, conta a presidente, originalmente filiada ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Agricultores Familiares da cidade de Valente, o qual também já presidiu.
Quem são elas?
O movimento sindical brasileiro é dividido em duas fases: o velho sindicalismo, que começa a se organizar entre os anos 1930 e 1945 e o novo sindicalismo, que surge com as greves operárias do ABC Paulista, em 1978 e alicerça o movimento sindical como é conhecido atualmente.
Nos registros dos momentos históricos da organização sindical no país não há muitas informações sobre a participação feminina nas lutas. Sabe-se que a primeira greve geral brasileira, em 1917, se iniciou na fábrica têxtil Cotonifício Crespi, cujo corpo de 400 funcionários era, em sua maioria, formado por trabalhadoras. Há ainda o conhecimento de algumas outras greves e movimentos em que a participação das mulheres foi crucial. No entanto, pouco se fala da atuação efetiva delas, quem eram, como lutavam e quais eram suas lideranças.
Além de Margarida Alves, também se destacam como líderes femininas no movimento sindical brasileiro Almerinda Farias Gama e Elvira Boni de Lacerda. A primeira, negra, advogada, cronista e fundadora do Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos lutou pelo voto feminino e foi a única mulher a votar como delegada na Assembleia Nacional Constituinte de 1933. A segunda, filha de imigrantes italianos, costureira, ativista política e líder grevista fundou, em 1919, junto com outras colegas, a União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas, entidade através da qual promoveu uma greve vitoriosa para a categoria.
Só composição
Hoje, as mulheres estão conseguindo mais espaço e visibilidade para suas lideranças e reivindicações, no entanto, a situação ainda está muito longe do ideal. A secretária-geral do Sindicelpa (Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Celulose e Papel do Estado da Bahia), Gilene Pinheiro, coloca uma lupa sobre a desigualdade de gênero na militância dos trabalhadores. “Na prática, as mulheres no movimento sindical estão distantes dos cargos de direção. Presidência, tesouraria, secretaria-geral […] Esses cargos continuam sendo ocupados por homens. E onde são decididas as coisas no sindicato? Nesses cargos. Nós continuamos sendo só composição”, explica.
Em sua dissertação de mestrado, Gilene pesquisa as lutas femininas no movimento sindical brasileiro. Ativista do sindicalismo desde 2009, tenta, através de sua pesquisa e militância, fazer com que as pautas específicas de mulheres se tornem tão centrais quanto os pleitos gerais dos trabalhadores. A principal demanda da pesquisadora e técnica em química é a efetivação real das políticas de cotas e paridade para gênero na CUT, central na qual é secretária de combate ao racismo. Enquanto as cotas estabelecem o mínimo de 30% de mulheres na direção, a paridade, implantada depois, além de assegurar numericamente a mesma quantidade de homens e mulheres, também objetiva distribuição igualitária de poder.
Contudo, Gilene destaca que, apesar dos avanços, as políticas ainda têm suas contradições. “As mulheres vão estar longe da executiva. Uma ou outra que consiga chegar lá vai estar só. E se você for analisar a questão racial verá que, em geral, as mulheres que ocupam espaços de poder são brancas. Quase não há mulheres negras”, pontua a secretária, que tem a interseccionalidade como carro-chefe do seu trabalho acadêmico e da sua atividade política.
Mulher negra, doméstica e sindicalista
A mulheridade e a negritude são condições que articulam opressões cruéis e violentas em todos os locais sociais e no ambiente sindical não é diferente. “É, você além de preta é burra”. Foi assim que o empregador de uma das filiadas do Sindoméstico-BA (Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia) respondeu a Creuza Oliveira, presidente da entidade, quando ela disse que não iria atendê-lo antes das pessoas que chegaram primeiro do que ele apenas pelo fato de ele ser médico.
Creuza relata que os ataques diretamente racistas que viveu na vida sindical vieram da parte dos patrões. Contudo, afirma já ter lidado com muita deslegitimação dentro da própria militância. “As pessoas achavam que todos os sindicatos eram sindicatos, menos o das domésticas”, conta a líder, que, inclusive, já atuou em processos trabalhistas em que militantes sindicais ocupavam o lugar de empregador. “Nós já tivemos episódios, na Justiça do Trabalho, com sindicalista, de ele chamar a colega de vagabunda; de [o patrão] levar o filho e dizer que o estava levando para ele aprender a como tratar essa gente”, narra.
Creuza Oliveira é uma liderança histórica das trabalhadoras domésticas no Brasil. Começou em 1986 o seu ativismo político, crucial para a aprovação da PEC das Domésticas. Além de presidente do Sindoméstico-BA, cuja direção só tem um homem, é também secretária-geral da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas). A líder já recebeu inúmeros prêmios por seu trabalho político, dentre eles o Prêmio Direitos Humanos, dado pela Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, ganho duas vezes: a primeira, em 2003, pela luta contra o trabalho infantil e a segunda, em 2011, pela luta pela igualdade racial. Se candidatou seis vezes para vereadora, uma para deputada estadual e uma para deputada federal, mas nunca conseguiu se eleger.
Apesar da trajetória de luta e reconhecimento, Creuza, que começou a trabalhar como babá aos 10 anos, ainda enfrenta grandes desafios dentro do Sindoméstico-BA, como a dificuldade de filiar as trabalhadoras e a falta de aporte financeiro, que impacta em todo o trabalho feito no sindicato. “O que nos silencia é não ter os recursos para botar um carro de som na rua, uma propaganda na TV; para ter um carro para viajar fazendo trabalho de base nas comunidades. Nós somos uma categoria que nunca teve imposto sindical”, revela.
Ocupar
A militância de Celeste Oliveira, coordenadora de aposentados e pensionistas do SINTAJ, é focada na representatividade e na formação. Além de pautar os assuntos ligados ao etarismo e à vida pós-aposentadoria, é também grande defensora dos debates sobre o feminismo, a situação da mulher e da população LGBTQIA+ na sociedade e no meio sindical, sempre trazendo a necessidade de debater esses temas nas atividades de formação do sindicato.
“Na minha atuação junto ao SINTAJ e na interlocução com as filiadas eu tento estabelecer uma comunicação entre os grupos. Promovendo seminários, pautando questões relevantes sobre direitos, divisão sexual do trabalho, administração de tempo e focando, sempre, na importância da mulher ocupar os espaços”, diz.
Celeste começou a sua vida profissional nos anos 70, trabalhando como aprendiz na tecelagem de uma fábrica de tecido de juta. Entrou no Judiciário em 1978. Relata que desde essa época já percebia as injustiças que eram cometidas com os trabalhadores, consciência que foi se aprofundando ao longo da militância que começou quando entrou na universidade.
A coordenadora reconhece que um sindicato que representa os trabalhadores do Judiciário tem um grande diferencial no que diz respeito à estrutura, acessos e à classe social dos filiados, e, por isso, faz questão de sempre trazer as pautas ligadas a gênero e a outras questões sociais para dentro da entidade sindical. “O SINTAJ é inovador nessas questões. É um sindicato muito alinhado com as pautas das mulheres. A gente sempre tem discussões sobre esses temas”, relata.
Sempre no final
Historicamente a taxa de filiação sindical feminina é sempre menor que a masculina e, atualmente, o fenômeno se acentua com a queda da taxa de sindicalização como um todo. Menos trabalhadores sindicalizados significa ainda menos trabalhadoras sindicalizadas. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), entre 2018 e 2019 o percentual de trabalhadores sindicalizados caiu de 12,5% para 11,2%. Segundo o órgão, 10,9% das trabalhadoras são filiadas a alguma entidade sindical, contra 11,4% de trabalhadores.
Gilene considera que o processo de destruição da imagem dos sindicatos promovido pela ideologia neoliberal, aliado à falta de acolhimento do sindicalismo para com as trabalhadoras contribui para os números citados. “Elas [as trabalhadoras] não veem no movimento sindical pautas ativas e fortes voltadas para a defesa da condição das mulheres no mercado de trabalho. Defesa de igualdade salarial, por melhores condições de trabalho para gestantes, a questão da creche, redução de carga horária no período da amamentação, luta contra o assédio sexual. O movimento sindical é muito voltado para as pautas econômicas mais amplas”, reflete.
“O apagamento das reivindicações e da trajetória feminina no movimento sindical existe. O atendimento às pautas das mulheres ainda é muito incipiente”, coloca Celeste.
“Quando você levanta uma demanda exclusiva de mulheres e coloca dentro da pauta que será discutida na plenária esse ponto que você levantou é colocado no final da pauta. Ou seja, vai ter um debate esvaziado. Nossas demandas são sempre jogadas pro final e muitas vezes até postergadas para a próxima plenária”, relata Gilene.
Mesmo nos poucos sindicatos em que a base tem uma maioria de mulheres, como os do setor têxtil, dos empregados domésticos e alguns da área de educação, a luta por direitos trabalhistas que levem em conta as necessidades específicas das trabalhadoras ainda enfrenta muitas dificuldades.
“O fato de a categoria ser majoritariamente feminina não é o determinante para as decisões serem a favor das mulheres. Elas encaminham enquanto trabalhadoras daquele setor. O fato de ter uma maioria de mulheres não aumenta a chance de ter garantido os direitos, senão a gente tinha avançado muito mais na questão das domésticas, por exemplo”, conclui Maria Madalena.
Por que lutam?
Contudo, apesar das dificuldades há os ganhos e, ao longo dos relatos, fica claro que é por isso que essas mulheres trabalham para que cada vez mais suas vozes sejam escutadas no movimento sindical. “A gente luta por creche, por moradia. Inclusive, o sindicato da Bahia conseguiu um conjunto habitacional [para a categoria] no fim de linha do Doron com 80 unidades. As unidades ainda são poucas, mas foi uma das vitórias mais importantes para o nosso sindicato e a nossa história”, destaca Creuza, que no trabalho de formação feito pelo Sindoméstico-BA sempre promove discussões sobre direitos, racismo, discriminação e as violências sofridas pelas trabalhadoras domésticas no ambiente de trabalho.
Gilene também olha para o passado e vê um presente e um futuro melhor resultantes do movimento de mulheres sindicalistas. “As nossas conquistas, que foram poucas, mas que representam muito diante do que nós tínhamos, me fazem perseverar. A ampliação da licença maternidade, o uniforme diferenciado durante a gestação, o abono mensal de falta para que as mulheres possam acompanhar seus filhos menores de idade ao médico. Essas pautas vêm sendo debatidas dentro do movimento sindical por mulheres, pelas poucas que estão lá. E isso nos dá esperança”.