Gilene Pinheiro 4 MIN PARA LER

Tem se consolidado no Brasil um lugar comum: a morte de meninos e homens pretos. E por serem pretos não comovem a todo o conjunto da sociedade e, justamente por não a tocar como todo, justifica-se, banaliza-se e comercializa-se via mídia imagens da violência estatal que, há décadas, vitima de forma genocida expressivas parcelas da juventude negra oriunda das periferias urbanas brasileiras.

Não se consolidou no país uma cultura de direitos humanos forte, pelo contrário, essa tem sido sistematicamente enfraquecida por debates tendenciosos e vazios, bem como por ações e declarações governamentais que levam parte da população – que não é morta nem sofre de racismo – a odiar aqueles que o são e sofrem, chegando até mesmo a lhes julgar culpados pelas mazelas sociais.

Isso porque as intervenções estatais nas comunidades afetadas pelo tráfico de drogas foram televisionadas como verdadeiras operações de guerra, como se ali não houvesse milhares de cidadãos com suas dignidades intrínsecas, seus sonhos, histórias e lutas. Sob o pretexto falacioso do combate ao crime organizado, as condições que autorizam à execução dessa parcela populacional se mantêm firmes de formas distintas, como pontuou (FRANCO, 2019), “ o estado mata e deixa morrer”.

Mata porque autoriza os seus subordinados das forças de segurança a o fazerem através de respaldos legislativos e laborais (treinamentos violentos nas corporações policias) que, desde o início, e baseado em teorias arcaicas e lombrosianas, ensinam a identificar um tipo deveras típico de criminoso, sempre negro, literalmente; é o que mostram dados do fórum brasileiro de segurança pública na cidade de Salvador-BA, onde em 2020, registrou-se que todas as vítimas da violência policial foram pessoas negras. Na maior cidade negra fora da África, esse contingente assustador ressalta o quão a nossa sociedade encontra-se impregnada pelo racismo histórico e estrutural que forneceu as bases que “autorizam” o poder público a matar esses jovens através de seus braços armados.

Foi ainda na capital soteropolitana que ocorreu o caso mais estarrecedor de brutalidade dos tempos recentes, onde dois homens negros, respectivamente tio e sobrinho, foram brutalmente torturados e assasidados como punição por terem furtado carne do Atakadão Atakarejo do bairro de Amaralina. O que mais espanta, porém, não é a violência, mas o modus operandi extralegal que guiou à execução: ao perceberem o furto, funcionários do atacadão prendem os flagrados e exigem dinheiro em troca de libertá-los, ameaçando entregá-los a traficantes locais, desesperadamente Bruno Barros (29) e Yan Barros(19) iniciam uma saga de ligações desesperadas para amigos e conhecidos na tentativa de arrecadar o valor, sem sucesso, imploram por fim que lhes entreguem à polícia, pedido que não fora atendido e lhes levaram à morte por execração pública, arrastados pelas ruas do bairro antes de serem baleados no rosto pelos traficantes, conforme relatos dos moradores locais. Diante da barbárie, pergunta-se: o que foi feito de qualquer ideal de pacificação dessas comunidades? Quem autoriza empresários e seus capangas contemporâneos, funcionários de empresas terceirizadas de segurança, como se observou nos casos Carrefour (2020) e Extra (2019)? O que se conclui dos três casos supracitados é simples: a morte ronda o corpo negro, quando não pelo tráfico, pela institucionalidade pública e/ou privada, e pela própria sociedade, que assiste resignada a essas cenas, não raras vezes, também temendo ser vítima da mesma sorte.

É incomparável o sentimento de vulnerabilidade da vida que paira sobre os jovens negros em comparação aos brancos. A vida do jovem negro das periferias brasileiras, desde o seu nascimento, é cerceada de cuidados e precauções, desde recomendações parentais acerca das horas de sair e chegar nos bairros até o modo de se vestir, pois o racismo à brasileira também é classita, julga duplamente, julga cor e vestes, exige “boa aparência” em troca de não lhes violar direitos fundamentais, como o de ir e vir.

Para tentar assegurar esses direitos, pressões vêm de diversas frentes: movimentos sociais, coletivos de jovens, movimentos sindicais, dentre outros que tentam e tentam historicamente levar os poderes públicos à reflexão e à implementação de políticas públicas combativas do racismo e da violência em suas raízes, pois como já foi comprovado em todo o mundo, à guerra armada as drogas é ineficaz em instaurar a paz, mas extremamente eficaz em gerar mais violência.

Na ausência de um plano de conscientização e de leis mais punitivas ao poder estatal, algumas medidas promissoras vem sendo tomadas em instituições de segurança pública em algumas unidades da federação, como é o caso de São Paulo e Bahia, que do ano passado pra cá, vêm instalando gradativamente câmeras de segurança nos uniformes de policiais. Em ambos os estados, essa medida logrou resultados significativos na redução da letalidade das abordagens policiais, com uma diminuição de 22 pontos percentuais em São Paulo e de 33% do número de mortes em confrontos policiais na Bahia.

Enquanto nosso estado de bem estar social é postergado por governos de extrema direita racistas, servos do sistema financeiro e inimigos da população, sobretudo a pobre e preta, devemos defender e lutar pela implementação dessas e outras medidas de controle da atuação de agentes de segurança pública e privada por toda a extensão do território nacional, uma vez que ela serve para o exercício do controle cidadão sobre os atos do poder de polícia estatal, para impedir abusos e violações de direitos, bem como para corroborar na melhoria das condições de trabalho para os policiais, uma vez que, além de monitorá los em sua atuação, traz a realidade das ruas e do comportamento criminoso.

Hoje a juventude negra do Brasil morre e é morta. Morre de fome, de desemprego, de falta de acesso aos itens mais básicos da cidadania, educação, lazer, etc; e é morta por aqueles que deveriam lhes assegurar o direito fundamental à liberdade de ir e vir, pelo racismo diárias de nossas instituições armadas.

É triste. É desumano. É racismo!

Referências Bibliográficas:

FRANCO, Fábio Luiz Nobrega. Necropolítica: entenda o que é a política da morte (Entrevista), TVT, Bom Para Todos, 2019. (https://www.tvt.org.br/necropolitica-entenda-a-politica-da-morte-bom-para-todos-12-12-19-%e2%98%80/).

Gilene Pinheiro é secretária de Combate ao Racismo da CUT Bahia