Muitos servidores têm acreditado que a reforma administrativa não os prejudicará; nada mais distante da verdade

Redação SINTAJ 4 MIN PARA LER
Reforma administrativa também prejudicará servidores da ativa

A essa altura dos fatos não é novidade para ninguém que a gestão de Jair Bolsonaro não tem qualquer apreço pelo serviço público e, muito menos, pelos trabalhadores deste setor. Dessa forma, claro está que a Reforma Administrativa (PEC 32/2020), proposta pelo ministro da economia Paulo Guedes, objetiva acabar com o setor público por dentro, dando como justificativa moral a suposta necessidade de tornar o Estado mais eficiente e produtivo. Afinal, quem pode ser contra um serviço público mais eficaz?

Para desmobilizar a resistência dos servidores que já estão na ativa o governo federal afirma que as novas regras só atingirão os trabalhadores que ingressarem no serviço estatal após a implantação da lei. No entanto, como já era de se esperar, essa afirmação não é verdade. A PEC 32/2020 é mais uma granada que Bolsonaro e Guedes querem colocar no bolso do trabalhador do setor público. O projeto vale para servidores federais, estaduais e municipais.

Fim da estabilidade, do regime jurídico único e possibilidade de o presidente acabar com cargos por decreto. Essas são algumas das principais mudanças que o governo diz que só repercutirá na vida funcional dos novos trabalhadores. Veja abaixo como pontos cruciais da reforma também prejudicam imensamente os servidores que já ingressaram no serviço público:

Estabilidade: Apesar de o governo afirmar que a reforma não ataca a estabilidade dos trabalhadores que já estão no setor público, a norma prevê a possibilidade de demissão por desempenho insatisfatório, regra que já existe, mas nunca foi regulamentada. Essa regra valerá para os todos servidores. Os que entraram antes e os que entrarão depois da aprovação da lei. A PEC diz apenas que a avaliação será regulamentada por uma lei ordinária. Essa possibilidade dá margem para que servidores sejam demitidos por critérios subjetivos, inclusive político-partidários, ou, até mesmo, por estarem envolvidos em atividade sindical.

Demissão por desempenho: A reforma deixa de exigir lei complementar para a regulamentação da demissão por desempenho insuficiente. Dessa forma, as regras para esse tipo de dispensa poderão ser estabelecidas através de lei ordinária, muito mais fácil de aprovar e de modificar do que uma lei complementar.

O analista político e diretor de documentação do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar), Antônio Queiroz, explica quais são os efeitos práticos das novas regras para demissão por desempenho insuficiente. “Significa que no dia seguinte o presidente pode baixar uma lei ordinária regulamentando isso [demissão por desempenho insuficiente]. [Lei ordinária] tem vigência imediata, pode ser implementada rapidamente e, dependendo do modelo, pode facilitar enormemente a dispensa [do trabalhador] e a perseguição política”, esclarece.

Fim do regime jurídico único: a reforma permitirá outras formas de ingresso no serviço público, que não apenas concurso público. Os novos servidores terão um vínculo empregatício muito mais frágil. A introdução de novas modalidades de contratação implicará em um contingente cada vez maior de trabalhadores precarizados no funcionalismo. A diminuição progressiva da quantidade de servidores estáveis acabará com o poder de pressão destes através de greves e mobilizações, já que a possibilidade de demissão provavelmente afastará os novos trabalhadores dos movimentos de reivindicação de direitos.

A economista e supervisora técnica do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos) Bahia, Ana Georgina Dias, relata que a reforma tem um trecho que deixa claro a intenção de dificultar greves e mobilizações. “Entre as novas formas de contratação está prevista a temporária. Dentre as justificativas para essa modalidade está exatamente a possibilidade de contratar rapidamente pessoas para realizar serviços públicos que estejam paralisados por movimentos grevistas”, conta Dias.

A Reforma Administrativa tramita no Congresso Nacional

Extinção de cargos, funções e órgãos através de decreto dos chefes do Executivo: a PEC 32 dá ao presidente, aos governadores e aos prefeitos o poder de, por decreto, extinguirem órgãos, cargos efetivos, de comissão, de liderança e assessoramento e funções de confiança. Da mesma forma, poderão reorganizar autarquias e fundações e atribuições de cargos do Poder Executivo. Hoje a maioria dessas mudanças só pode ser feita através de aprovação de lei nas Casas Legislativas.

“Isso é bastante preocupante. A depender do governante e da simpatia dele por determinados órgãos essa regra pode acabar gerando uma certa perseguição e até mesmo uma extinção de órgãos por uma não adequação ou alinhamento ao pensamento do governante”, destaca Dias.

Fim da exigência de o governo federal e os estados promoverem formação e aperfeiçoamento dos servidores públicos: o fim desta obrigação vai recair diretamente sobre a qualificação do trabalhador e vai aumentar bastante as demissões por desempenho insuficiente. Como o trabalhador vai ter um bom rendimento sem a devida formação?

Queiroz acredita, inclusive, que o fim da obrigação do governo de prover formação aos servidores, juntamente com o modelo de avaliação por desempenho, poderá gerar um sistema de favorecimento. “Hoje o servidor cresce por tempo de serviço. Se o governo que instituir o sistema de avaliação tiver preconceito com servidor ele [o governo] vai selecionar. Disponibilizar cursos e treinamento e avaliar bem apenas quem interessar”, prevê o analista.

Fim da exclusividade de servidores efetivos na ocupação de cargos comissionados em todos os poderes: além de permitir que os novos trabalhadores, contratados por regimes mais precarizados, também possam assumir esses cargos, todos os cargos comissionados serão, gradativamente, substituídos por cargos de liderança e assessoramento, um dos tipos de novas contratações de servidores que o projeto permite e que não conta com estabilidade.

Dias considera o fim dessa exclusividade uma medida muito nociva para o funcionalismo e para a prestação do serviço público como um todo. “Nós podemos voltar a uma situação de apadrinhamento, patrimonialismo, da troca de favores, sobretudo entre os políticos. A segunda questão é que tira do servidor de carreira mais uma possibilidade de ascensão”, detalha a economista.

Como acontece com a maioria das leis que mexem em direitos dos trabalhadores do setor público, ficam de fora da reforma administrativa parlamentares, militares, magistrados, promotores e procuradores. O projeto ainda mantém praticamente as mesmas regras atuais em relação à estabilidade e aposentadoria para os servidores das carreiras típicas de Estado, como diplomatas e auditores da Receita. O próprio governo já deixou claro que essa reforma é um “abrir de portas”. A norma será complementada com mais projetos e não é possível saber o que virá.

A previsão oficial é que a reforma seja colocada em votação quando a Câmara dos Deputados retomar os trabalhos presenciais. No entanto, há grandes chances de a matéria ser pautada antes disso acontecer, pois o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tem total interesse na matéria e seu mandato acaba dia 31 de janeiro de 2021.

Quando indagado sobre o objetivo real da proposta Queiroz resume: “a reforma não guarda nenhuma relação com a melhoria da qualidade dos serviços públicos nem com a meritocracia. Ela pretende criar condições para transferir a infraestrutura de produção de bens e serviços do Estado, construída com recursos públicos, para o setor privado explorar em bases lucrativas”.