Todo mundo no mesmo barco?
Pandemia de Covid-19 escancara desigualdades da sociedade brasileira
A primeira morte por coronavírus do Rio de Janeiro foi de uma empregada doméstica. Hipertensa e diabética, a trabalhadora de 63 anos se infectou ao ter contato com a sua patroa, que foi passar o carnaval na Itália e, ao voltar, não avisou à funcionária que estava de quarentena. O teste positivo para Covid-19 da empregadora saiu no dia que a funcionária morreu, 24 horas após a entrada desta no hospital.
As proporções alarmantes que a pandemia vem ganhando em todo o mundo tem propiciado o surgimento de um discurso que prega que o novo coronavírus irá fazer da humanidade um lugar melhor. A ideia propagada é que a Covid-19 veio para mostrar que todos são iguais e que, diante do surto mundial, estão, ricos e pobres, no mesmo barco.
A morte da trabalhadora doméstica fluminense escancara a falácia desse discurso. O caráter democrático do vírus importa pouco. O que conta mesmo é a possibilidade de prevenir o contágio e o acesso a tratamento e esses não são nada democráticos no Brasil.
Apesar de o vírus ter entrado no país através da elite econômica, é nas regiões mais pobres que a taxa de letalidade da Covid-19 é mais alta. Em Salvador, no final de abril, a Pituba, bairro nobre da cidade, registrava 3 mortes com um total de 54 infectados. A mesma quantidade de óbitos que Pau da Lima, região periférica do município, que tinha apenas 11 infectados.
O BÁSICO DA DESIGUALDADE
A desigualdade se mostra a partir de um ato tão simples como o de lavar as mãos. Muitas favelas e áreas periféricas em todo o país sofrem com falta de água e de acesso a saneamento básico. De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), referentes ao ano de 2018, cerca de 35,7% dos brasileiros vivem sem esgoto. Várias notícias veiculadas na mídia tradicional mostram a falta de água enfrentada por moradores das favelas do Rio de Janeiro em meio à pandemia.
Outro problema é o isolamento social. Como colocar em prática essa medida tão importante para o combate ao coronavírus em áreas pobres onde, muitas vezes, famílias numerosas moram em casas de no máximo dois ou três cômodos e sem sistema de ventilação adequado?
A associação entre as condições sanitárias e de moradia precárias se junta à uma alimentação ruim e/ou insegurança alimentar, que, além de enfraquecer o sistema imunológico, faz com que muitas pessoas em situação de vulnerabilidade social tenham doenças que as tornam mais suscetíveis à ação do coronavírus, como diabetes e hipertensão.
DADOS RACIALIZADOS
No Brasil, a esmagadora maioria das pessoas em situação de pobreza é negra. Segundo dados da SIS (Síntese de Indicadores Sociais), produzida pelo IBGE e divulgada em novembro do ano passado, 72,7% dos pobres brasileiros são negros. Obviamente a cor da pobreza também determinaria as estatísticas em relação à mortalidade pela Covid-19.
Dados do boletim epidemiológico da prefeitura de São Paulo mostram que negros têm 62% a mais de chances de morrer por Covid-19 do que brancos. O documento analisou números até o dia 24 de abril deste ano. Levantamento da Agência Pública mostrou que entre os dias 11 e 26 de abril a morte de negros pela doença quintuplicou. Foi de pouco mais de 180 para 930. Além das condições de vida já citadas acima, as dificuldades de acesso a serviços de saúde também é um ponto crucial para explicar essa taxa de mortalidade elevada entre os negros.
Enquanto maior parte da população pobre e que, portanto, na imensa maioria dos casos depende apenas do SUS (Sistema Único de Saúde) para ter acesso a tratamentos, os negros têm que lidar com todos os problemas estruturais da saúde pública somados ao colapso devido à falta de leitos de UTI com respiradores para tratar os casos graves de Covid-19.
AUXÍLIO EMERGENCIAL E INFORMAIS
Enquanto os mais ricos continuam com suas fortunas intactas e boa parte da classe média e média alta mantém as suas atividades no regime de home office, preservando assim, sua renda os milhares de trabalhadores informais e de desempregados – do antes e do pós pandemia – têm que lidar com o descaso do governo federal em relação ao problema da perda de renda dos mais pobres devido à quarentena.
Além de inicialmente propor um valor irrisório – R$ 200 -, o presidente Bolsonaro demorou de forma inexplicável para sancionar a lei que criava o benefício. A implementação foi feita de forma desorganizada e ainda no final de maio muitos que necessitavam e se enquadravam nos requisitos ainda seguiam sem receber o auxílio.
TIROS E INOCENTES MORTOS
Além de todas as adversidades enfrentadas pelos mais pobres já citadas nesta reportagem, ainda há os casos dos moradores de favela que têm que lidar com as operações policiais nessas localidades mesmo durante a pandemia. Segundo reportagem do jornal Extra, entre os dias 1 e 9 de abril houve o dobro de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro, em relação ao mesmo período de 2019, totalizando 68 operações, contra 34 realizadas no ano passado.
No dia 15 de maio uma operação realizada no Complexo do Alemão deixou pelo menos dez mortos, de acordo com matéria da Folha de São Paulo. O tiroteio começou por volta de 6h da manhã e durou até depois das 8h. Segundo reportagem do jornal O Dia sobre o assunto, moradores relataram que tiveram suas casas invadidas e que lojas foram saqueadas pelos policiais militares que participaram da ação. Muitos contaram que estavam com medo de pegar o novo coronavírus por terem que se esconder com muitas pessoas em um único cômodo.
Ainda no dia 18 do mesmo mês, o garoto João Pedro, de 14 anos, foi baleado dentro da casa de um primo, por policiais que entraram na residência atirando e jogando granadas durante uma operação policial realizada pela Polícia Federal, com apoio da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio.
A polícia retirou o adolescente de casa e o levou de helicóptero deixando a família sem notícias de João até a manhã do dia 19, quando descobriram que o garoto estava morto. “A polícia chegou lá de uma maneira cruel, atirando, jogando granada, sem perguntar quem era. Se eles conhecessem a índole do meu filho, quem era meu filho, não faziam isso. Meu filho é um estudante, um servo de Deus. A vida dele era casa, igreja, escola e jogo no celular”, desabafou o pai de João Pedro, Neilton Pinto, em entrevista ao G1. “Espero que meu filho seja o último, disse o pai em entrevista à Ponte Jornalismo. No mesmo dia 20 de maio em que Neilton concedeu essa entrevista João Vitor da Rocha, 18 anos, foi morto por policiais que faziam uma ação na Cidade de Deus.